domingo, 5 de julho de 2020

Flamengo perde chance rara no Brasil: a de construir um legado de jogo


Por Leonardo Miranda
Jornalista, formado em análise de desempenho pela CBF e especialista em tática e estudo do futebol

Ao priorizar o aspecto financeiro, o clube perde a chance de documentar o trabalho de Jorge Jesus e construir uma cultura que fique para a posterioridade.

 
Reprodução
Não existe almoço grátis. A frase popularizada pelo economista Milton Friedman é usada como argumento para defender a modernização financeira do futebol brasileiro nos últimos anos. Programas de sócio-torcedor, aumento no preço de ingressos novos modelos de transmissão fazem parte de um emaranhado de soluções para arrecadar mais dinheiro, sanar dívidas e contratar os melhores em campo. É uma receita válida e eficiente, que resultou em dois títulos. E depois do almoço? Não é hora de saber plantar a própria comida ao invés de acumular dinheiro para pedir no delivery?
Existem vários métodos de fazer a bola entrar na rede. O mais saudável e constante deles é criar uma administração racional e consciente, que use a base para alimentar o time profissional e forme seus próprios profissionais. O nome disso é escola de jogo. Com a renovação de Jorge Jesus até 2021, o Flamengo tem a faca e o queijo na mão para montar uma cultura seguindo os ensinamentos do técnico que revolucionou o clube e produziu o melhor futebol desde 1981.
Jorge Jesus durante treino do Flamengo no Ninho do Urubu — Foto: Alexandre Vidal/Flamengo
Jorge Jesus durante treino do Flamengo no Ninho do Urubu — Foto: Alexandre Vidal/Flamengo
Exatamente um mês depois da celebrada renovação, nada foi feito. Não é raro ouvir nos bastidores que a comissão portuguesa deixou um “legado zero”. É um exagero, mas reflete o incômodo com o acesso negado que treinadores da base e funcionários que não são do profissional têm aos trabalhos de Jesus. Tudo é fechado para que ninguém veja, copie e reflita sobre. A diretoria, que deveria ter esse papel de construção, não tem interesse em colocar tudo no papel. Não há um documento que explique os métodos de treinamento de Jesus, ou como ele planifica a semana. Ninguém sabe exatamente qual é o tipo de treino físico que fez o time suportar uma maratona.
Um exemplo prático de como funciona a cultura de jogo no campo: você está careca de saber que a linha de defesa do Flamengo joga adiantada, para facilitar que a marcação seja alta e sufocante. Pablo Mari foi chamado por entender esse jeito de jogar, assim como Léo Pereira foi a reposição ideal por já jogar assim no Athletico. Como a cultura de jogo unifica todo mundo, essa reposição está lá na base. Claro que existem os melhores e piores, mas ao invés de gastar dinheiro, o Flamengo poderia dar lugar a um jovem identificado com a torcida, que pudesse dar frutos esportivos e depois fosse vendido, gerando lucro. E assim o ciclo se alimenta, o time se mantém no topo e as finanças ficam sempre em dia.
Entenda como funciona a marcação alta do Flamengo
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Entenda como funciona a marcação alta do Flamengo
A cultura de jogo é a bíblia do clube. História, valor, tática...no fim, futebol é um fenômeno cultural. A forma como um time joga é um reflexo dos valores daquela torcida e de uma determinada cultura. O brasileiro não aceita um time jogando atrás, na retranca. Gosta de criatividade e alegria. Mas para o uruguaio, jogar atrás é um reflexo da cultura de disciplina que o país tem. “O Brasil tem uma cultura de formar jogadores criativos na solução de problemas. É tão único que essa é a própria forma de viver do brasileiro. É como o brasileiro enfrenta seus problemas sociais. Roberto Da Matta já dizia que é no campo de futebol que o brasileiro manifesta sua cultura num jogo de futebol”, cita Carlos Thiengo, autor do Glossário de Futebol da CBF.
A história mostra que chances assim são raras e geralmente desperdiçadas.
Em 1977, Cláudio Coutinho foi chamado para a Seleção Brasileira após uma invencibilidade de 31 jogos e levou consigo os famosos conceitos da “teia de aranha” e “overlapping” que ajudaram a moldar o fantástico time de 1981. O intercâmbio foi feito pelos jogadores, como Júnior e Zico, do que pelo clube. Não é exclusivo ao Fla. O São Paulo até hoje reverencia Telê Santana pelos dois mundiais, mas nunca se importou em replicar seus ensinamentos. A torcida do Internacional admira o futebol refinado de Minelli e Ênio Andrade na década de 1970, mas a diretoria jamais tentou colocar num papel. A torcida do Palmeiras adora brigar consigo mesma e pedir o futebol da Academia, apesar de gostar mesmo é do estilo aguerrido de Felipão.
Não é só futebol, nunca é. Clubes brasileiros são especialistas em perder chances de construir legado e cultura porque não confiam em processos, mas em pessoas. Sérgio Buarque de Holanda explica no livro “Raízes do Brasil” que a colonização portuguesa se deu por núcleos afastados de um poder central e coletivo. Os engenhos de açúcar eram tão afastados entre si que o governo não fiscalizava nem impunha suas próprias leis. Resultado? Os moradores seguiam indivíduo – o senhor de engenho – e não a regra coletiva, na forma de governo. O futebol só reflete esse fenômeno. Os times que construíram grandes legados geralmente estão ligados a uma pessoa: o “Santos de Pelé”, o “São Paulo de Telê”, o “Flamengo de Jorge Jesus”. Sempre pessoas, nunca o processo.
Aula de história à parte, os efeitos da falta de uma cultura de jogo no futebol brasileiro são nocivos e remontam a uma crise que perdura há 50 anos. O Santos ficou 20 anos sem ganhar títulos após a aposentadoria de Pelé. O Internacional perdeu quinze anos quando Falcão foi embora. O Palmeiras foi rebaixado duas vezes após a saída da Parmalat. A culpa é sempre de um ou de outro....imagine a dor de cabeça que poderia ter sido poupada se o clube tivesse processo, identidade e método?
Hoje o Flamengo está num outro patamar. Jogadores e técnicos chegam e saem. Diretorias vão e vem. Uma hora a bola entra na rede, na outra não. A única coisa que fica é a torcida. O Flamengo tem uma oportunidade única de construir um legado de verdade, uma cultura unicamente dele. Uma chance que o dinheiro não compra.
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